Foto: Ma Poupoule
Manaus – O ministro da Justiça Torquato Jardim, no dia 15 de agosto, recebeu representantes da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que defendem a implementação do parecer 001/2017 que inviabiliza a demarcação de terras indígenas. Além disso, estas instituições pediram a suspensão de todos os direitos embasados na Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), adotada pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva, a partir de 2007. Diante desta grave ameaça, movimentos sociais composto por extrativistas, agroextrativistas, movimentos da agroecologia, quilombolas e indígenas e elaboraram uma carta dirigida ao presidente Michel Temer.
Confira a carta de repúdio na íntegra:
A Constituição Federal de 1988 é chamada, não sem razão, de Constituição Cidadã, por sua natureza de resgate e afirmação dos direitos universais do povo brasileiro. Desde a sua promulgação, o Estado brasileiro tem buscado estabelecer instrumentos que coloquem em prática estes direitos a partir das estruturas existentes, criadas, em sua maioria, durante regimes absolutistas ou ditatoriais, para a manutenção dos direitos daqueles que já os tinham, ou seja, de uma elite de classe ou econômica. A revolução dentro da ordem estabelecida da Constituição Cidadã é mãe do Sistema Único de Saúde, do processo de implantação de relações federativas equilibradas, do sistema nacional de educação, só para citar alguns.
É fato, no entanto, que o Estado brasileiro abriga uma diversidade social e cultural que se expressa pela multiplicidade de comportamentos, institucionalidades sociais, línguas, etnias, saberes e modos de vida presentes em nosso país. A própria Constituição avançou ao reconhecer direitos específicos para os povos indígenas e para quilombolas, dois componentes fundamentais no “ser brasileiro”. No entanto, este foi só o começo do movimento em direção à realidade de nossa riqueza sociocultural.
Ao movimento do reconhecimento e implantação de direitos universais, acrescente-se aquele de reconhecimento das singularidades deste multiculturalismo. Em razão de processos históricos diferenciados, segmentos da sociedade brasileira desenvolveram modos de vida próprios e distintos dos demais, ocasionando ao mesmo tempo riqueza sociocultural e invisibilidade perante a sociedade e às políticas públicas de modo geral.
Tal invisibilidade se refletiu, até muito pouco tempo, na ausência de instâncias do poder público responsáveis pela articulação e implementação de políticas para esses povos e comunidades, especialmente no que diz respeito àquelas de inclusão social. Mesmo no caso dos grupos para os quais já existia reconhecimento constitucional – indígenas e quilombolas – ainda persistem questões primordiais pendentes, como o acesso a terra, à saúde e educação diferenciadas, de condições mínimas necessárias para a permanência desses povos e comunidades em seus territórios e com sua identidade cultural preservada.
Grande parte dos problemas e dificuldades por nós enfrentados no acesso às políticas públicas oferecidas aos demais segmentos da sociedade brasileira decorrem da ausência de reconhecimento dessas diferenças e no conseqüente despreparo histórico dos órgãos e agentes públicos para lidar com elas, despreparo que felizmente vem sendo superado. A Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT) permitiu-nos a experiência de vivermos nossa cidadania de modo integral, sem que para isso tivéssemos que abrir mão de nossas práticas culturais, sociais e econômicas.
A implementação da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT) requereu uma definição do conceito de comunidades tradicionais. No campo teórico, várias foram as tentativas de conceituação, partindo da nossa realidade diferenciada diante da sociedade envolvente. Buscou-se definir um conjunto mínimo de características que permitiram diferenciar os povos e comunidades tradicionais do restante da sociedade, clarificando assim quais princípios poderiam servir como elementos identificadores desse conjunto heterogêneo.
Invariavelmente, a questão primordial foi o acesso ao território e aos recursos naturais. Neste sentido, cumpre-nos destacar a relevância do papel que desempenhamos na conservação dos recursos biológicos e dos conhecimentos tradicionais a eles associados, inclusive na manutenção da agrobiodiversidade, em contraposição ao agravamento de aspectos relacionados às possibilidades de nossa permanência nos espaços necessários à nossa subsistência.
Assegurar o acesso ao território significa manter vivos, na nossa memória e nas nossas práticas sociais, os sistemas de classificação e de manejo dos recursos naturais, os sistemas produtivos, os modos tradicionais de distribuição e consumo da produção. Isso, além de sua dimensão simbólica: no território estão impressos os acontecimentos e fatos históricos que mantêm viva a nossa memória, como a base material de significados culturais que compõem a nossa identidade social.
O território também faz parte da nossa cosmologia, referendando um modo de vida e uma visão de homem e de mundo; ele é apreendido e vivenciado a partir dos sistemas de conhecimento próprios, portanto, encerra também uma dimensão lógica e cognitiva. Além de assegurar a sobrevivência dos povos e comunidades tradicionais, ele constitui a base para a produção e a reprodução dos saberes tradicionais. A existência destas comunidades, baseada em sistemas sustentáveis da exploração dos recursos naturais, desenvolvidos ao longo de gerações e adaptados às condições ecológicas locais, desempenha papel fundamental na proteção da natureza e na manutenção da diversidade biológica. Em contrapartida, sua relação estreita com os recursos naturais faz com que sejam extremamente vulneráveis à degradação ambiental: além de atingi-los física e economicamente, essa degradação afeta sua identidade, sua definição como indivíduo e como grupo.
Outro ponto que determina a nossa especificidade enquanto povos e comunidades tradicionais são as características dos nossos processos produtivos marcados pela economia de subsistência, no âmbito da qual a produção é determinada por questões singulares ligadas às necessidades versus possibilidades. Neste sentido, também se destacam as dificuldades por nós enfrentadas no campo econômico, sobretudo no que diz respeito ao acesso ao crédito e ao reconhecimento das nossas formas de organização social.
Podemos dizer que somos populações que nos definimos pelo uso sustentável da terra, pelo destino da nossa produção e o nosso vínculo territorial, incluindo nossa situação fundiária, pela importância que os ciclos naturais têm nas nossas práticas produtivas, pelo uso que fazemos dos recursos renováveis e as práticas do uso comunitário dos mesmos, pelo nosso conhecimento profundo do ecossistema no qual vivemos e pelo uso de tecnologias de baixo impacto ambiental, por nossa organização social, na qual a família extensa representa papel importante, também por nossas expressões culturais e as inter relações entre os grupos.
No entanto, existem várias maneiras de se pensar a tradicionalidade, e cada comunidade vai ter um conjunto diferente dos elementos anteriores para defini-la como tal. Assim, no centro desta definição está o auto-reconhecimento.
A Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT) foi desenhada de forma participativa, em uma série de debates públicos realizados no âmbito da Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), fórum de composição paritária (Decreto de 13 de julho de 2006) visando, justamente, à elaboração de uma política nacional que refletisse tal diversidade. No I Encontro Nacional de Comunidades Tradicionais (agosto de 2004, Luziânia – GO), além de povos indígenas e quilombolas, que, como já dissemos, têm direitos específicos reconhecidos na Constituição, agroextrativistas, seringueiros, quebradeiras de coco babaçu, pescadores artesanais e caiçaras que conquistaram direitos em associação com a proteção ao meio ambiente, estiveram presentes geraizeiros, vazanteiros, pantaneiros, ciganos, pomeranos, comunidades de terreiro, fundos e fecho de pasto, faxinalenses e ribeirinhos.
Além do I Encontro Nacional de Comunidades Tradicionais, foram realizadas cinco oficinas regionais no período de 13 a 23 de setembro de 2006, nos estados do Acre, Pará, Bahia, Mato Grosso e Paraná, as quais contaram com a participação de cerca de 350 representantes de povos e comunidades tradicionais de todo o Brasil. A conjunção de demandas históricas e de um governo comprometido com o resgate da noção republicana da cidadania se materializou na promulgação do Decreto nº 6.040 de 7 de fevereiro de 2007, que instituiu uma política construída em estreita vinculação com os seus beneficiários, além de dar uma definição legal ao conceito de povos e comunidades tradicionais e aos seus territórios.
Gerada a partir de demandas históricas de segmentos sociais até bem pouco tempo invisíveis aos olhos do Estado brasileiro, a instituição da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT) foi fundamental não somente por propiciar a inclusão política e social dos povos e comunidades tradicionais, como também por estabelecer um pacto entre o poder público e esses grupos, com obrigações de parte a parte e o comprometimento maior do Estado ao assumir a diversidade no trato com a realidade social brasileira. O seu grande mérito foi tirar da invisibilidade essa expressiva parte da população brasileira, estabelecendo diretrizes e objetivos que permitram às políticas universais do governo brasileiro se adequarem para atender às demandas e características singulares deste público.
É, por definição, uma política transversal, que demanda a participação e o engajamento de ministérios das mais diversas áreas, de infra-estrutura à inclusão social, para não falar dos mais óbvios, como Desenvolvimento Social, Cultura e Meio Ambiente, e assim, esta diversidade de interesses e responsabilidades está refletida na composição do seu CONSELHO NACIONAL.
Cientes das ofensivas da bancada ruralista com assento no Congresso Nacional contra a nossa existência e os nossos modos de vida, reveladas através do pedido a Vossa Excelência endereçado, por meio do OFICIO No. 239/2018-CNA, datado de 14 de Agosto de 2018, assinado pelo presidente da Confederação Nacional da Agricultura – CNA e pela Deputada Federal Tereza Cristina Correa da Costa Dias, Presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), no qual solicita a revogação do Decreto 6040/2007, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), nós, Povos e Comunidades Tradicionais, por suas entidades representativas com assento no Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais – CNPCT, vimos perante Vossa Excelência manifestar veementemente o nosso REPÚDIO a mais essa ameaça aos nossos direitos e garantias estabelecidos, tanto constitucionais quanto nos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, a exemplo da Convenção 169 da OIT, ao tempo em que apelamos ao vosso bom senso no sentido de rejeitar tal propositura.
Por oportuno reafirmamos que continuaremos a nossa luta pela garantia dos nossos direitos territoriais, culturais, ancestrais bem como de nossos fazeres e saberes e pela manutenção dos nossos modos de vida, tão importantes para o equilíbrio socioambiental e econômico do nosso país. Lutamos pela construção de um modelo sócio econômico justo e inclusivo que combata as desigualdades, a violência, a pobreza e promova o fortalecimento do Estado Brasileiro e das instituições civis, de modo especial os segmentos de Povos e Comunidades Tradicionais.
Por fim Senhor Presidente da República, reafirmamos que continuaremos atuantes na defesa dos nossos direitos constituídos e na luta política para a proteção e garantia dos nossos direitos historicamente conquistados. Não podemos permitir que o Estado Brasileiro seja conivente com mais essa ameaça de retirada e usurpação dos nossos direitos.
A continuidade da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT) como parte da agenda social do governo, além de um diferencial estratégico, significa o atendimento a uma demanda histórica da sociedade, representando o reconhecimento do papel fundamental por nós desempenhado no desenvolvimento diário de conhecimentos e práticas que permitem uma convivência harmônica com o ambiente, tornando-nos diretamente responsáveis pela conservação de grande parte da biodiversidade existente hoje no território brasileiro.