No último dia 30 de agosto, a Secretaria Especial do Programa de Parcerias de Investimentos (SPPI), ligada ao Ministério da Economia, suspendeu as Reuniões de Governança Ambiental no Entorno da Rodovia BR-319, que eram realizadas mensalmente na modalidade on-line. A decisão surpreendeu o Observatório BR-319, pois deixa a sociedade civil organizada e todos os interessados em assuntos relacionados às obras na rodovia sem um espaço de diálogo plural e interinstitucional. Segundo o titular da secretaria, Alex Garcia de Almeida, a medida se deve ao período eleitoral, após o qual as reuniões devem ser retomadas. No entanto, a explicação está longe de dar a segurança necessária para a manutenção do diálogo e garantir a transparência necessária ao processo.
“Lamentamos muito que, em um momento tão importante para o fortalecimento da governança na região, o governo tenha optado por fechar as portas e restringir a participação da sociedade civil organizada e de outros atores tão importantes. Voltamos para um cenário sem espaços de participação e transparência”, disse a secretária-executiva do Observatório BR-319 (OBR-319) em resposta à suspensão das reuniões.
“Acredito que nossas reuniões de governança são de trabalho, e de fundamental importância para manter a transparência nesse processo. Esta decisão aflige toda a sociedade civil e demais participantes, que precisam e desejam acompanhar cada passo das ações na BR-319. Lamento que as questões políticas partidárias estejam acima do empenho de todos nós que atuamos na região”, disse a diretora executiva da Casa do Rio, Mônica Pilz Borba. “Já participei de inúmeros fóruns e nunca vi paralisação por conta de eleições”, completou.
As Reuniões de Governança Ambiental no Entorno da Rodovia BR-319 começaram em dezembro de 2021, quando a SPPI era comandada por Rose Hofmann, que em fevereiro foi substituída por Alex Garcia de Almeida. A inciativa preencheu, parcialmente, o espaço deixado pelo Fórum de Discussão Permanente sobre o Processo de Reabertura da Rodovia BR-319, criado em julho de 2017 e coordenado pelo Ministério Público Federal (MPF), mas que teve as atividades suspensas em março de 2020, por causa da pandemia de covid-19, e até agora não foram retomadas.
Na avaliação da secretária-executiva do OBR-319, é perigoso que em um momento tão delicado do processo de licenciamento do Trecho do Meio, a população fique sem um espaço acessível para se atualizar e requerer informações sobre o assunto. “O licenciamento do Trecho do Meio avançou a passos largos desde o ano passado, ignorando etapas importantes do processo, como diálogo propriamente dito e as consultas aos povos da floresta. Tivemos audiências públicas realizadas a toque de caixa na pandemia e sem a participação efetiva das populações impactadas pelas obras. Este ano, ainda tivemos a apresentação do Componente Indígena e a liberação da Licença Prévia”, destaca Fernanda Meirelles. “Medidas importantes estão em andamento e precisam ser acompanhadas de perto, como o levantamento da situação fundiária na área de influência da rodovia, concessões florestais, definição da instalação de postos de fiscalização, atualizações sobre as obras no Trecho C e muito mais”, acrescenta.
Além disso, uma das preocupações das organizações membro do OBR-319 é o andamento de fiscalizações de denúncias realizadas nas reuniões, principalmente, em períodos críticos de desmatamento e na temporada de queimadas. Entre as situações acompanhadas pelo OBR-319 estão o aumento da rede de ramais ao sul da rodovia; o avanço do ramal Belo Monte, em Canutama; invasões e desmatamento da Floresta Estadual (FES) Tapauá; e, mais recentemente, desmatamento na região do Tupana, em Careiro.
A coordenadora do Programa de Integridade Socioambiental da Transparência Internacional Brasil, Kátia Demeda, destaca que transparência e diálogo são fundamentais para garantir a efetiva governança ambiental da área de influência da rodovia. “Reuniões como as da SPPI e do Fórum da BR-319 são fundamentais para promover maior transparência das informações sobre o uso de recursos públicos na reconstrução da BR-319. Além disso, é importante estarmos atentos de que a evolução das obras, o processo do licenciamento ambiental e a implementação das pré-condicionantes devem caminhar juntos com as ações de fiscalização na rodovia. Todas estas medidas são intrínsecas”, alerta Kátia.
Falta de diálogo é proposital
Desde 2007, quando o governo federal anunciou a reconstrução da BR-319 e a necessidade do processo de licenciamento ambiental foi estabelecida, pouca coisa foi feita para ampliar o acesso a informações sobre a situação. Eventos esporádicos como audiências públicas e a outras reuniões foram realizados, mas nada que tivesse frequência programada e muito menos que alcançasse as comunidades na área de influência da rodovia.
Para a pesquisadora do Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getúlio Vargas (FGVces) e articuladora da Rede Transdisciplinas da Amazônia (Reta), Dionéia Ferreira, a falta de diálogo com os povos da floresta é projeto. “Existe um distanciamento muito grande entre os interesses dos órgãos públicos com as demandas e pautas das comunidades, e no ano eleitoral isso se aprofunda, uma vez que tudo passa a girar em torno da corrida pelos votos. Os espaços de diálogo são criados e mantidos pela sociedade civil, aonde os órgãos públicos só participam por pressão dos órgãos de controle ou justiça, de modo que o diálogo com a sociedade não é algo que está consolidado na cultura política do Estado”, avaliou.
A também pesquisadora do FGVces e articuladora da Reta, Jolemia Chagas, acrescenta: “O público envolvido nestas iniciativas devia ser a população diretamente impactada pela BR 319, mas não é isso que acontece. A tomada de decisões é realizada à revelia destas pessoas e eu acho que isso é um problema estrutural da política, porque, geralmente, espaços de diálogo, quando criados, estão centralizados na capital ou na sede dos municípios, por isso os moradores de comunidades mais afastadas pouco participam”, avalia Jolemia. “As próprias reuniões de governança ficaram muito restritas às instituições e esqueceram os povos indígenas, ribeirinhos, extrativistas, público que não tem participado dessas rodadas de conversa, embora elas estejam acontecendo de forma virtual”, acrescentou a pesquisadora. “Geralmente, grandes empreendimentos como a BR-319 não são pensados para os povos da floresta, mas para atender interesses empresariais e do Estado, por isso as negociações sobre eles são sempre realizadas entre os governantes e não têm capilaridade de diálogo entre as comunidades que estão nos territórios na área de influência da rodovia”, disse Chagas.
Iniciativas locais
Atualmente, o FGVces coloca em prática na área de influência da rodovia a Agenda de Desenvolvimento Territorial da Região da BR-319, iniciativa de fôlego que promove a escuta e o diálogo em territórios. A ADT tem como territórios-alvo o Distrito de Realidade, no município de Humaitá; comunidades dentro e no entorno de Áreas Protegidas em Manicoré; e comunidades dentro e no entorno da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Igapó-Açu, no Careiro. “Mesmo quando há iniciativas de diálogo por parte de agentes de governo implicados no empreendimento – muitas vezes o próprio Estado é o proponente da obra – o que se observa é uma motivação mais orientada pela gestão política de conflitos e menos pela oportunidade de qualificação técnica do processo, a partir das contribuições da população. Mas é justamente o conhecimento de quem vive no território que poderia fazer a maior diferença para a efetividade das medidas planejadas”, defendeu a gestora de projetos do FGVces, Carolina Derivi. “No entanto, tão importante quanto haver espaços institucionais de participação é assegurar que todos os segmentos sociais possam compreender plenamente o debate, portanto defender os seus interesses de maneira qualificada e autônoma. Essa é uma responsabilidade do agente de governo que toma a iniciativa do diálogo, mas é também uma responsabilidade e um chamamento à ação para a sociedade civil organizada”, completou.
Fórum será repaginado
O Fórum de Discussão Permanente sobre o Processo de Reabertura da Rodovia BR-319 deve ser reativado em 2023. Dentro das atividades da ADT está a reestruturação do espaço, que conta com o apoio da Reta e do FGVces. Segundo o procurador da República e coordenador, Rafael Rocha, a principal novidade desta nova fase do Fórum é a discussão de pontos específicos relacionados à governança dos territórios na área de influência da rodovia, no lugar de reuniões com pautas abertas e temas livres. “As discussões do Fórum foram muito interessantes, mas ainda prevalece uma ideia de que a rodovia deve ser recuperada a qualquer custo, à margem da lei. Não há mais nenhuma assimetria de informação sobre o licenciamento ambiental, mas ninguém é obrigado a concordar com as teses do MPF. Os relatórios parciais conclusivos foram aprovados pela unanimidade dos presentes, e ali houve um consenso sobre o que realmente aconteceu durante esses anos de tentativas de recuperação da BR-319. O importante agora é avançar para garantir a governança do território, independentemente da pavimentação”, declarou Rafael. “Agora, a prioridade serão as pessoas que serão diretamente impactadas pelo empreendimento. Vamos realizar reuniões itinerantes, porque nem sempre os moradores das comunidades ao longo da rodovia conseguem se deslocar até Manaus”, completou.
Enquanto isso…
O Amazonas passa pela pior temporada de queimadas dos últimos 24 anos, quando teve início o monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpe). Já são mais 18 mil focos de calor registrados até o mês de setembro, que também registra recorde com mais 8 mil incêndios em todo o estado.
Imagens aéreas de queimadas na Amazônia entre agosto e setembro. A primeira foi feita pelo fotógrafo Christian Braga, na área da CDRU do rio Manicoré. A segunda foi registrada pelo fotógrafo Nilmar Lage, em uma área com cerca de 8 mil hectares de desmatamento – a maior em 2022, em Porto Velho (RO). Fotos: Greenpeace Brasil
Desde julho, o Greenpeace Brasil, uma das organizações membro do OBR-319, realiza mais uma etapa de seu programa anual de monitoramento de fogo e desmatamento da Amazônia. Na área de influência da BR-319, as investigações estão concentradas na região chamada de Amacro, batizada assim porque compreende municípios entre os estados do Amazonas, Acre e Rondônia, e que registrou desmatamentos de grandes proporções, muitos em florestas públicas. A Amacro, também é chamada de Zona de Desenvolvimento Sustentável (ZDS) Abunã-Madeira.
Em 2022, a região foi palco do maior desmatamento registrado na Amazônia no ano: 7.962 mil hectares, entre os municípios de Porto Velho e Cujubim, em Rondônia, nas Glebas Federais Rio Preto e Jacundá. A destruição equivalente a 10.921 campos de futebol padrão Fifa. Em investigação, o Greenpeace identificou 24 parcelas cadastradas no Sistema de Gestão Fundiária (SIGEF) que se sobrepõem ao desmatamento detectado pelo sistema DETER, metade delas, 12, no nome de um único proprietário.
Outro município crítico da área de influência da BR-319 é Lábrea (AM). Em investigação, o Greenpeace identificou que a expansão do desmatamento no local se dá principalmente por duas estradas irregulares: Ramal do Boi e o Ramal do Jequitibá. Neste segundo, foi flagrado um desmatamento de 2.374 hectares em área de floresta pública sem destinação da Gleba Curuquetê, desmatada entre os meses de fevereiro e junho de 2022. Já no Ramal do Boi, destaca-se o caso da Fazenda Boa Fé. Entre outubro de 2021 e julho de 2022 foram detectados 462 hectares de desmatamento dentro dos limites da propriedade. Em maio, a fazenda Boa Fé foi embargada e multada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em R$ 745 mil.
O objetivo do trabalho de monitoramento realizado pelo Greenpeace Brasil é validar em campo os dados oficiais, baseados em imagens de satélites, além de produzir provas em imagens e investigações sobre as situações encontradas. Para isso, a organização combina sobrevoos regulares sobre as áreas com alertas de desmatamento e fogo, com expedições em solo e investigações em bases de dados públicas.
“Esse trabalho é muito importante, pois além de comprovar a precisão dos sistemas de monitoramento por satélite brasileiros, auxilia na produção de provas que possam levar a denúncias, além de levar ao público as imagens do que está de fato acontecendo com a floresta”, diz Rômulo Batista, porta-voz da campanha de Amazônia do Greenpeace.
Com colaboração da jornalista Rosana Villar, da comunicação do Greenpeace Brasil, que gentilmente cedeu textos, informações e imagens para esta seção.
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